"Uma criança é como o cristal e como a cera. Qualquer choque, por mais brando, a abala e comove, e a faz vibrar de molécula em molécula, de átomo em átomo; e qualquer impressão, boa ou má, nela se grava de modo profundo e indelével." (Olavo Bilac)

"Un bambino è come il cristallo e come la cera. Qualsiasi shock, per quanto morbido sia
lo scuote e lo smuove, vibra di molecola in molecola, di atomo in atomo, e qualsiasi impressione,
buona o cattiva, si registra in lui in modo profondo e indelebile." (Olavo Bilac, giornalista e poeta brasiliano)

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Adaptação, memórias e processo de luto na adoção

No mês de março fui convidada para integrar o grupo de profissionais psicólogos brasileiros que iriam responder às perguntas do novo Manual sobre adoção do Tribunal de Justiça de Pernambuco que foi lançado este mês de junho.
Desta vez, as perguntas são mais aprofundadas, com respostas mais completas que no primeiro manual, feitas por pais e por pretendentes a pais adotivos.Abaixo uma das respostas.

As crianças e/ou adolescentes, que passaram muito tempo em casas de acolhimento, é mais difícil de se adaptar-se a uma família substituta do que aquela que não teve esta experiência?

O fenômeno da adaptação é algo complexo e exige de qualquer ser humano tempo e é melhor que aja um espaço que possibilite reflexão e reconhecimento das mudanças.

As mudanças na adoção são bastantes significativas tanto para um bebê, uma criança pequena que não passou por um abrigo, como para uma criança grande que viveu por alguns anos nele.

Claro que quanto mais cedo uma criança for adotada melhor, por ter vivido menos tempo de perto o sentimento de desamparo e abandono, mas o que vai de fato diferenciar este processo não é a idade, é como cada criança vivencia seu próprio processo, porque a dor do abandono existe em todas.

Não podemos esquecer que no processo de adoção não existe somente o sentido de ganhar uma família, existe também o sentimento de perder uma outra, a de origem. O momento da adoção deixa claro o desligamento com aqueles que um dia foram vistos e sentidos como pais, como parentes, mesmo os que não tenham sido bons, e com as figuras do abrigo que, de qualquer modo, existia uma relação de apego e afeto da criança. É preciso entender que a criança passa por uma espécie de luto, que pode ser vivida mais fortemente no momento da adoção ou mais tarde, quando ocorre o entendimento mais cognitivo da situação de perda e rejeição.

O pai da teoria do apego, John Bowlby, descreve as fases de luto, que são entorpecimento e negação, anseio e protestos, desorganização e desespero, recuperação e restituição. Nessas fases toda a ansiedade também podem ser manisfestadas através de sonhos e agitação noturna, muito comum também em bebês. Após esse período, a criança passa a entender melhor as mudanças, a aceitar as perdas e a estar mais atentas aos ganhos.

Nesse aspecto também entram variáveis, como seu temperamento, seu modo de sentir e lidar com seu histórico, suas memórias, “fantasmas” e medos, a base que os novos pais proporcionam a esta criança, a sensação de segurança que desenvolve de acordo com os estímulos e respostas desses novos pais, o senso de otimismo e resiliência que ela tem, a possibilidade de se expressar livremente neste novo espaço que deve ser de acolhimento pleno de suas necessidades emocionais e afetivas. Todos esses aspectos contam mais que a idade e a vida vivida num abrigo.

Quem adota um bebê, por exemplo, não saberá exatamente como ele viverá mais tarde estas memórias, isso também ocorre com os filhos biológicos, que quando mais velhos podem reagir de modo negativo a um evento amargo que viveu em seus primeiros anos de vida.

O entendimento destes fenômenos é bem subjetivo, mas aguçar o olhar nos ajuda a desenvolver uma análise crítica e proporcionar uma vida sã aos filhos, mostrando a eles um espaço seguro para se viver, com amor, segurança e limites.

Cintia Liana Reis de Silva é psicóloga é psicoterapeuta, especialista em psicologia conjugal e familiar. Ela vive e trabalha na Itália.

Um comentário:

Rosana disse...

Gostei muito do texto. Parabéns!
Acrescento apenas o seguinte:
As crianças que são abrigadas durante os primeiros anos de vida e assim permanecem por longos períodos tendem a apresentar um atraso do seu desenvolvimento global.
Não raro apresentam atrasos significativos no seu desenvolvimento física e cognitivamente.
Também o desenvolvimento emocional poderá sofrer pelo prolongamento da situação de abrigo.
A criança poderá não ter oportunidade de se vincular afetivamente à uma figura maternal (não necessariamente feminina) dificultando que vivencie as primeiras relações objetais.
Teremos então uma criança pequena que aparentemente recusa aproximação e manifestações de afeto por parte dos novos futuros pais, angustiando-os sobremaneira.
Não raro esta incapacidade inicial de aceitar e manifestar afeto pelos adultos que se espera aceite como pais será por eles sentida como rejeição ao seu afeto e dedicação.
Estes pais poderão sentir grande dificuldade em "forçar" à criança o seu afeto, carinho e dedicação, por sentirem que estariam tentando se "apropriar" do pequeno ser, obrigando-o a se sujeitar seu amor.
Crianças abrigadas ainda bebês não raro riem menos, interagem menos, buscam menos as atenções dos adultos ao seu redor.
Chegam à casa dos novos pais passivas, apáticas, dormem a noite toda e pouco reclamam dos estímulos externos.
A importância do acompanhamento inicial da nova família que recebe este pequeno é fundamental para que se ultrapasse com êxito estes frustrantes momento iniciais.
Vencida esta etapa não raro a criança se converte do bonequinho apático e submisso em um verdadeiro terrorzinho, exigente, monopolizador e tirano.
Esta tb é uma fase necessária ao resgate das vivências perdidas quando ainda abrigada.
Agirá, num corpinho que já anda e inicia a fala, como um bebê rn. Todo rn é assim com relação às suas principais figuras parentais. Se distingue do terrorzinho acima pelo único fato de não dispor da independência física que este já possui.
Teremos então um rn em corpo de criança pequena. Dai as birras terríveis, os choros ininterruptos sem causa aparente, a literal "perseguição" à mãe.
Mas esta tb é uma fase que será naturalmente, e em um tempo não tão longo quanto parecerá aos pais, ultrapassada e a criança passará, na sua grande maioria, a agir como as demais crianças de sua idade cronológica.
Se falamos de crianças maiores, incluídos aqui os pré-adolescentes, teremos uma criança que chega autônoma, risonha, disposta a agradar para "garantir" este novo espaço e status.
Mas tb estas crianças maiores, principalmente aquelas que passaram longos períodos abrigadas, tenderão a regredir por vezes intensamente.
E os mesmos esforços terão os seus novos pais de dispender para ultrapassar estas etapas iniciais de adaptação à nova família.
O ideal, então, ao meu ver, é minimizar ao máximo a permanência das crianças, tenham a idade que tiverem, na situação de abrigamento.
Assim, indispensável se priorizar a busca pela família biológica e estensa, com a fixação de prazos para que se resolva a reinserção familiar, quando possível, ou o pronto encaminhamento da criança para família substituta por via da adoção.
Há que se lembrar sempre que a Constituição Federal manda priorizar sempre e sempre a criança e adolescente. O que se contrapõe às longas tentativas infrutíferas de retorno à família biológica de origem.
Quando falamos de crianças e adolescentes x abrigo, valem as palavras da poetisa chilena Gabriela Mistral:
"Muitas coisas que precisamos pode esperar; a criança não. Agora é o tempo que seus ossos estão sendo formados, seu sangue está sendo feito, seu corpo sendo desenvolvido. Para ela não podemos dizer amanhã. Seu nome é hoje”.