"Uma criança é como o cristal e como a cera. Qualquer choque, por mais brando, a abala e comove, e a faz vibrar de molécula em molécula, de átomo em átomo; e qualquer impressão, boa ou má, nela se grava de modo profundo e indelével." (Olavo Bilac)

"Un bambino è come il cristallo e come la cera. Qualsiasi shock, per quanto morbido sia
lo scuote e lo smuove, vibra di molecola in molecola, di atomo in atomo, e qualsiasi impressione,
buona o cattiva, si registra in lui in modo profondo e indelebile." (Olavo Bilac, giornalista e poeta brasiliano)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Odeio perguntas cretinas

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“O pai dele é coreano?”, pergunta uma senhora à minha mulher, no corredor do supermercado, referindo-se aos olhos puxados do meu filho Antonio. A Ana responde com um simples não e segue olhando as ofertas do dia. 

Curiosa, a senhora arrisca novamente: “Então é japonês?”. Apesar da inconveniência, minha esposa faz um esforço para esboçar um leve sorriso e nega pela segunda vez, ainda de forma bastante polida. 

A partir deste momento, o grupo desuniforme de quase sete bilhões de seres vivos que chamamos de humanidade divide-se em dois. Os mais agraciados pela seleção natural de Darwin, que desde o tempo das cavernas conseguiram solucionar problemas muito complexos, como descobrir o fogo, rapidamente perceberiam a inadequação daquelas indagações, ainda mais quando se dirigiam a uma mãe com bebê de colo, alguém que mal tem tempo para almoçar, muito menos para ficar de papo enquanto escolhe os tomates na seção de hortifruti. Entretanto, uma linha científica alternativa suspeita que a outra parcela do grupo chegou a esses tempos modernos por pura questão de sorte, ou por acaso, talvez comendo restos de dinossauros e mamutes caçados pelos outros, pois, parece, sobreviveu ao paleolítico, atravessou o neolítico e circula até hoje por aí – nos corredores da Câmara, do Senado e dos supermercados –, sem se dar ao trabalho de desenvolver a capacidade de raciocinar. 

A senhora em questão, indubitavelmente, faz parte da segunda metade do grupo. Incansável, entretida com a brincadeira, ela resolveu testar seus dotes de adivinhação uma terceira vez, questionando se o pai do Antonio era chinês, ao que a minha mulher, desta vez mais ríspida, respondeu com uma explicação genérica de que nossa família tem os olhos pequenos e se afastou da interrogadora antes que ela percorresse todas as demais nações do continente asiático com suas suposições. 

Os dicionários chamam de cretino o indivíduo que tem grave deficiência mental. Que me perdoem Aurélio, Houaiss e outros senhores das palavras, mas esta definição está completamente incorreta. Eu, como pai de um filho com este problema, afirmo, assino embaixo e reconheço em cartório que pessoas como o Antonio podem sofrer de tudo, menos de cretinismo. Hoje, ao observar alguém com deficiência, em vez de notar os movimentos descoordenados e os pensamentos desorganizados, vejo um cérebro lutando com todas as forças para funcionar, muitas vezes com mais afinco e dedicação do que nós, os normais, o fazemos, seja lá o que a palavra normal signifique. Cretinice mesmo é ter todo o intelecto disponível, mas usá-lo com parcimônia. É ter preguiça – e não inabilidade – de pensar. 

No tempo em que tive a oportunidade de dar aulas, aprendi a respeitar o valor de uma dúvida, por mais estúpida que pareça. Quando o objetivo é obter um novo conhecimento, não há censura para as perguntas. O problema é quando, espertos que somos, acreditamos já sabermos a resposta e, sem querer, ou querendo, deixamos esta pressuposição escapar. A chance de estar certo existe. Porém, não se pode perder de vista o risco de cometer um erro presunçoso, uma gafe desrespeitosa ou simplesmente de se passar por cretino, quando existem formas bem melhores de formular as mesmas questões. 

Perdão pela teoria maçante de professor antiquado. Você que dormiu no terceiro parágrafo, por favor, acorde. Chegamos aos exemplos práticos. Vale a pena anotar. 

Não há nada mais cretino do que vislumbrar uma barriguinha em uma mulher e disparar “Para quando é o bebê?”. Por mais que você acredite que ela não tenha exagerado no chope com frango a passarinho, existe a possibilidade de não haver um filho ali dentro. É mais prudente comentar algo genérico sobre crianças. Se ela estiver grávida, certamente dirá. 

Ligar para um conhecido no meio da tarde, num dia de semana, e perguntar “Você está no trabalho?” também é cretino. Às vezes tenho vontade de responder que não, que estou no motel, gabaritando o Kama Sutra, mas que a posição da catapulta não impede de falar ao telefone. Não importa o grau de intimidade, pergunte apenas se a pessoa pode atender. 

Perguntar quanto alguém pagou por um carro ou apartamento: muito cretino. Deixa implícito que você tem uma noção do valor e que, na verdade, está avaliando se a pessoa fez bom negócio ou não. Ou pior, sugere que o que você realmente quer saber é o poder de compra do seu amigo, fingindo não fazer uma comparação interna com as suas próprias posses e utilizar o resultado da conta da maneira menos nobre possível: para se sentir melhor ou pior. 

A lista é grande. Não quero me estender. Como exprimi antes, a cretinice não está na curiosidade, mas na ilusão de saber o que a outra pessoa irá dizer. O segredo é segurar a língua a tempo e não revelar a sua hipótese. É a única maneira de se proteger. 

Há alguns anos, uma amiga minha cruzou na rua com uma conhecida dos tempos de escola. Elas se abraçaram com saudades, deram gritinhos, perguntaram como andavam as coisas, se abraçaram de novo, celebraram com nostalgia aquele encontro inesperado. A colega, confiando na antiga cumplicidade de amigas de colégio, provavelmente sentindo o prazer de ter superado algum trauma de infância, contou animadíssima que finalmente tinha tomado coragem e feito uma cirurgia plástica. Minha amiga, sem pensar, logo soltou: “Não acredito! No queixo?” O sorriso da colega desabou e quebrou no chão. Perplexa, em choque, tateando o queixo com a mão, a garota respondeu: “Não."

Fonte: http://www.flizam.com/2011/12/odeio-perguntas-cretinas.html


Postado Por Cintia Liana

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