"Uma criança é como o cristal e como a cera. Qualquer choque, por mais brando, a abala e comove, e a faz vibrar de molécula em molécula, de átomo em átomo; e qualquer impressão, boa ou má, nela se grava de modo profundo e indelével." (Olavo Bilac)

"Un bambino è come il cristallo e come la cera. Qualsiasi shock, per quanto morbido sia
lo scuote e lo smuove, vibra di molecola in molecola, di atomo in atomo, e qualsiasi impressione,
buona o cattiva, si registra in lui in modo profondo e indelebile." (Olavo Bilac, giornalista e poeta brasiliano)

sexta-feira, 25 de junho de 2010

A Criança Odiada

Foto: Facebook

Por David Boadella

A CRIANÇA ODIADA
A EXPERIÊNCIA ESQUIZÓIDE

Jeanine: Você não quer falar sobre isso?
Conrad: Eu não sei. Eu nunca falei sobre isso realmente. Falei com os médicos, mas com nenhuma outra pessoa, você é a primeira pessoa que pergunta.
Jeanine: Por que você fez isso?
Conrad: Eu não sei. Era como cair dentro de um buraco. Era como cair num buraco e ele vai ficando cada vez maior, e você não pode sair, e então, de repente, ele está dentro e você é o buraco e você está preso, e tudo está acabado. É algo assim. E não é realmente assustador, exceto quando você olha para trás porque você sabe o que estava sentindo, estranho e agora...

Pessoas comuns.

ETIOLOGIA
Á medida em que o bebê humano emerge de seu estado de autismo primário, em torno das três a cinco semanas de idade, a “barreira sensorial” vagarosamente se dissolve e a criança desenvolve uma percepção crescente da pessoa que cuida dela. A pessoa encontrada nesse contato inicial com o mundo pode ou não ser receptiva, disponível ao contato e responsiva a este ser totalmente dependente. Na realidade, os pais podem ser frios, ríspidos, podem rejeitar a criança ou estar cheios de ódio, ressentindo- se da própria existência da criança. A reação dos pais pode, obviamente, não ser tão extrema nem tão consciente. Mas sabemos que muitas crianças humanas não foram desejadas, e aquelas que foram desejadas num nível conscientes nem sempre são desejadas num nível menos consciente. Além do mais, muitos pais que pensam que querem crianças começam a pensar de forma diferente diante do impacto de um ser humano totalmente dependente, quando as circunstâncias mudam, e os recursos de que dispõem para lidar com a realidade de um bebê são muito menores do que o esperado.

Talvez ainda mais comum seja a situação na qual os progenitores pensam que querem a criança, mas o que eles realmente querem é um reflexo ideal de seu próprio eu idealizado. Eles querem um “bebê perfeito” em vez de um ser humano vivo, com elementos de natureza animal. Qualquer criança irá, mais cedo ou mais tarde e repetidamente, desapontar esse ideal; e a rejeição e raiva paternas que isto provoca poderão ser chocantes. Em todos os casos, o que provoca a rejeição e o ódio paternos é a vida, real e espontânea da criança.

Quando se une a realidade comum da criança odiada com a compreensão de que a “cria” recém-nascida do ser humano não tem uma idéia clara da diferença entre ele mesmo e a pessoa que cuida dele, pode-se especular sobre a natureza do resultado infeliz. Pode-se imaginar que, quando a pessoa que cuida da criança é suficientemente ríspida, a criança possa simplesmente escolher voltar para o lugar de onde veio ao mundo separado do autismo. O tratamento frio ou raivoso por parte de quem cuida da criança pode ser total ou parcial, contínuo ou periódico. A retirada defensiva da criança será mais profunda como resultada de abuso contínuo, por exemplo, do que como resposta a estouros ocasionais ou frieza periódica por parte de quem cuida dela.

Winnicott (1953) refere-se ao conceito de “criação suficientemente boa” para descrever a habilidade de cuidar da criança com empatia, o que levará o recém-nascido ao estado de simbiose e o manterá lá até que se inicie o processo de diferenciação, que leva à individuação. Quando a criação não é “suficientemente boa” – e principalmente quando é abusiva e punitiva – o resultado é o distanciamento, desligamento e literal afastamento do contato social. Como os processos cognitivos do recém-nascido são de natureza muito primitiva e a estas alturas do desenvolvimento, é difícil entender exatamente como esta cadeia de acontecimentos é interpretada em qualquer nível mental. No entanto, podemos supor que num nível de percepção muito primitivo, e depois em níveis cada vez mais complexos de compreensão, a criança experimente um medo intenso, que alguns rotularam de medo de aniquilação (Black & Black, 1974; Lowen, 1967).

A resposta inicial natural de uma criança a um ambiente frio, hostil e ameaçador é o terror e a raiva. No entanto, o terror crônico é uma posição insustentável para se levar à vida, assim como a raiva crônica. Além do mais, tal raiva convida à retaliação, que é experienciada como aterrorizante e ameaçadora da vida. Então, a criança volta-se contra ela mesma, suprime os sentimentos e respostas naturais, e usa as defesas de ego mais primitivas, disponíveis no período simbiótico, para lidar com um mundo hostil. Além da retirada ao autismo, ou como parte dela, o organismo essencialmente pára de viver, a fim de preservar sua vida. A habilidade para fazer isto é limitada pelo desenvolvimento do ego da criança nesse período. Entretanto, durante os meses de simbiose, ela pode regredir para o período de desenvolvimento anterior e com isso negar a realidade de sua existência. O ódio do progenitor será introjetado e começará a suprimir a força de vida do progenitor, de tal forma que movimento e respiração são inibidos e desenvolve-se um enrijecimento da musculatura para restringir a energia vital.

A experiência terapêutica com clientes que compartilham este tipo de história sugere que, mais cedo ou mais tarde, eles tomam duas decisões centrais de sentimentos: 1) “Há algo de errado comigo”, e 2) “Eu não tenho direito de existir”. Estas representações cognitivas podem, obviamente, ser conscientes ou negadas, mas a um nível central de existência o indivíduo tomou a resposta do ambiente a um nível pessoal e incorporou-a ao seu auto-conceito. Salientando esse efeito está o fato de que, neste ponto simbiótico do desenvolvimento, não há diferenciação real entre a criança e a pessoa que cuida dela. Este fator é a definição central característica da simbiose no bebê humano, e é a assimilação pré-verbal desta execrável “decisão de script” que a torna tão insidiosa e difícil de mudar.

Uma forma de se ter uma idéia do dilema inicial da pessoa esquizóide é lembrar-se de algum momento, num supermercado ou outro lugar público, onde você tenha sido testemunha da explosão de um pai ou uma mãe com seu filho pequeno. Este exemplo de abuso público, freqüentemente alarmante, demonstra a perda de controle de um progenitor, o que não é incomum, e não se pode evitar refletir sobre os limites deste tipo de explosão. Provavelmente, a própria criança também não tem certeza sobre esses limites, e ocasionalmente o progenitor pode ter ido muito além do simples gritar ou das punições corporais menores. Nessas circunstâncias públicas, você pode ter visto a própria criança assumindo o papel materno e fazendo todo o necessário para que o progenitor se recompusesse e saísse da situação. Em progenitores com estabilidade emocional marginal, estas explosões abusivas freqüentemente têm muito pouco a ver com o que a criança tenha feito ou deixado de fazer. Como resultado, a criança freqüentemente desenvolverá uma vigilância muito profunda, assim como a habilidade de agir como pai de seus pais quando a perda de controle for iminente ou consumada.

Como será explicado em maiores detalhes na exploração dos comportamentos, atitudes e sentimentos desta estrutura de caráter, a criança odiada começa a encontrar um porto seguro na retirada para os esforços cognitivos e espirituais. “Se minha mãe não me ama, então Deus me amará”, e se o mundo ao redor parece ser hostil, é realmente uma unidade beneficente na qual a vida atual é um mero flash do plano eterno e “a vida neste plano físico é realmente irrelevante”. Desta forma, a vida é espiritualizada em vez de vivida. A criança odiada pode ser aquela que ama a humanidade, mas que se esquiva quase automaticamente da intimidade exigida num relacionamento amoroso continuado.

À medida que a pessoa amadurece, a sofisticação e complexidade das defesas aumentam, e, no entanto, num nível emocional profundo, a estrutura de defesa é muito primitiva e reflete essencialmente uma negação do que realmente aconteceu em relação à figura materna. Esta negação congela a situação presente na simbiose – um desejo não preenchido de união íntima por um lado, e por outro uma recusa automática da fusão. A condição simbiótica congelada produz uma continuada propensão a introjetar inteiramente as idéias, características e sentimentos de outros, assim como uma tendência a projetar nos outros bons e maus sentimentos e motivações. Nesta estrutura de caráter, nunca houve, essencialmente, uma ligação simbiótica completa que levasse mais tarde à individuação com funcionamento autônomo. A experiência da criança odiada é: “Minha vida ameaça a minha vida”. A aparente independência e desapego desta pessoa basicamente assustada e zangada são puramente defensivos; há uma interrupção do desenvolvimento no processo de humanização e uma interrupção da vida antes que ela tivesse realmente começado.

Por David Boadella


Postado Por Cintia Liana

Nenhum comentário: