"Uma criança é como o cristal e como a cera. Qualquer choque, por mais brando, a abala e comove, e a faz vibrar de molécula em molécula, de átomo em átomo; e qualquer impressão, boa ou má, nela se grava de modo profundo e indelével." (Olavo Bilac)

"Un bambino è come il cristallo e come la cera. Qualsiasi shock, per quanto morbido sia
lo scuote e lo smuove, vibra di molecola in molecola, di atomo in atomo, e qualsiasi impressione,
buona o cattiva, si registra in lui in modo profondo e indelebile." (Olavo Bilac, giornalista e poeta brasiliano)

domingo, 30 de maio de 2010

Aspectos jurídicos com relação à adoção por pais homossexuais

Foto: Facebook

"Adoção: um direito de todos e todas", CFP, capítuo 7 (último).
Por Fernando Nazaré. Página 42.

Acerca da possibilidade da adoção por casais formados por pessoas do mesmo sexo, há que se concluir que a resposta é afirmativa. Isso porque a homossexualidade reveste-se de um laço afetivo, representando a exteriorização do amor pelo próximo, pelo companheiro ou companheira, que adquire contornos sociais. Vale dizer que não pode a sociedade marginalizar a união constituída por pessoas do mesmo sexo, sob qualquer tipo de discriminação, o que é vedada pela Constituição Federal de 1988, a conhecida Constituição cidadã. Ademais, o relacionamento constituído assume, hodiernamente, laços de família, em virtude do vínculo afetivo, social e econômico assumido pelo casal. Faz-se importante lembrar que o amor, o respeito e o cuidado com o companheiro representam a mais legítima forma de viver do ser humano, sendo forçoso concluir que a negação a esses direitos constitui flagrante violação do direito à vida, e viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

Nesse sentido, veja-se, à guisa de informação, o julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a seguir transcrito, que merece destaque pela justiça e lucidez dos seus fundamentos, in verbis:

APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE – Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível 70013801592) RELATÓRIO Des. Luiz Felipe Brasil Santos (RELATOR)

(...) Com efeito, o art. 1.622 do Código Civil dispõe: Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou viverem em união estável. No caso destes autos, L. (que já é mãe adotiva dos meninos) e LI. (ora pretendente à adoção) são mulheres, o que, em princípio, por força do art. 226, § 3º, da CF e art. 1.723 do Código Civil, obstaria reconhecer que o relacionamento entre elas entretido possa ser juridicamente definido como união estável, e, portanto, afastaria a possibilidade de adoção conjunta. No entanto, a jurisprudência deste colegiado já se consolidou, por ampla maioria, no sentido de conferir às uniões entre pessoas do mesmo sexo tratamento em tudo equivalente ao que nosso ordenamento jurídico confere às uniões estáveis (...).

A ausência de lei específica sobre o tema não implica ausência de direito, pois existem mecanismos para suprir as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os preceitos constitucionais (art. 4º da LICC). (...) Com efeito, o tratamento analógico das uniões homossexuais como entidades familiares segue a evolução jurisprudencial iniciada em meados do séc. XIX no Direito francês, que culminou no reconhecimento da sociedade de fato nas formações familiares entre homem e mulher não consagradas pelo casamento. À época, por igual, não havia, no ordenamento jurídico positivo brasileiro, e nem no francês, nenhum dispositivo legal que permitisse afirmar que união fática entre homem e mulher constituía família, daí por que o recurso à analogia, indo a jurisprudência inspirar-se em um instituto tipicamente obrigacional como a sociedade de fato.

Houve resistências inicialmente? Certamente sim, como as há agora em relação às uniões entre pessoas do mesmo sexo. O fenômeno é rigorosamente o mesmo. Não se está aqui a afirmar que tais relacionamentos constituem exatamente uma união estável. O que se sustenta é que, se é para tratar por analogia, muito mais se assemelham a uma união estável do que a uma sociedade de fato. Por quê? Porque a affectio que leva estas duas pessoas a viverem juntas, a partilharem os momentos bons e maus da vida é muito mais a affectio conjugalis do que a affectio societatis. Elas não estão ali para obter resultados econômicos da relação, mas, sim, para trocarem afeto, e esta troca de afeto, com o partilhamento de uma vida em comum, é que forma uma entidade familiar. Pode-se dizer que não é união estável, mas é uma entidade familiar à qual devem ser atribuídos iguais direitos.

Estamos hoje, como muito bem ensina Luiz Edson Fachin, na perspectiva da família eudemonista, ou seja, aquela que se justifica exclusivamente pela busca da felicidade, da realização pessoal dos seus indivíduos. E essa realização pessoal pode dar-se dentro da heterossexualidade ou da homossexualidade (...). Parece inegável que o que leva estas pessoas a conviverem é o amor (...). Em contrário a esse entendimento costuma-se esgrimir sobretudo com o argumento de que as entidades familiares estão especificadas na Constituição Federal, e que dentre elas não se alinha a união entre pessoas de mesmo sexo (...).

A proteção jurídica que era dispensada com exclusividade à ‘forma’ familiar (pense-se no ato formal do casamento) foi substituída, em conseqüência, pela tutela jurídica atualmente atribuída ao ‘conteúdo’ ou à substância: o que se deseja ressaltar é que a relação estará protegida não em decorrência de possuir esta ou aquela estrutura, mesmo se e quando prevista constitucionalmente, mas em virtude da função que desempenha – isto é, como espaço de troca de afetos, assistência moral e material, auxílio mútuo, companheirismo ou convivência entre pessoas humanas, quer sejam do mesmo sexo, quer sejam de sexos diferentes.

Se a família, através de adequada interpretação dos dispositivos constitucionais, passa a ser entendida principalmente como ‘instrumento’, não há como se recusar tutela a outras formas de vínculos afetivos que, embora não previstos expressamente pelo legislador constituinte, se encontram identificados com a mesma ratio, como os mesmos fundamentos e com a mesma função. Mais do que isto: a admissibilidade de outras formas de entidades ‘familiares’ torna-se obrigatória quando se considera seja a proibição de qualquer outra forma de discriminação entre as pessoas, especialmente aquela decorrente de sua orientação sexual – a qual se configura como direito personalíssimo – seja a razão maior de que o legislador constituinte se mostrou profundamente compromissado com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II, CF), tutelando-a onde quer que sua personalidade melhor se desenvolva (...).

O argumento de que à entidade familiar denominada ‘união estável’ o legislador constitucional impôs o requisito da diversidade de sexo parece insuficiente para fazer concluir que onde vínculo semelhante se estabeleça, entre pessoas do mesmo sexo serão capazes, a exemplo do que ocorre entre heterossexuais, de gerar uma entidade familiar, devendo ser tutelados de modo semelhante, garantindo-se-lhes direitos semelhantes e, portanto, também, os deveres correspondentes (...).

A partir do reconhecimento da existência de pessoas definitivamente homossexuais, ou homossexuais inatas, e do fato de que tal orientação ou tendência não configura doença de qualquer espécie – a ser, portanto, curada e destinada a desaparecer – mas uma manifestação particular do ser humano, e considerado, ainda, o valor jurídico do princípio fundamental da dignidade da pessoa, ao qual está definitivamente vinculado todo o ordenamento jurídico, e da conseqüente vedação à discriminação em virtude da orientação sexual, parece que as relações entre pessoas do mesmo sexo devem merecer status semelhante às demais comunidade de afeto, podendo gerar vínculo de natureza familiar.

Para tanto, dá-se como certo o fato de que a concepção sociojurídica de família mudou. E mudou seja do ponto de vista dos seus objetivos, não mais exclusivamente de procriação, como outrora, seja do ponto de vista da proteção que lhe é atribuída. Atualmente, como se procurou demonstrar, a tutela jurídica não é mais concedida à instituição em si mesma, como portadora de um interesse superior ou supra-individual, mas à família como um grupo social, como o ambiente no qual seus membros possam, individualmente, melhor se desenvolver (CF, art. 226, §8º). Partindo então do pressuposto de que o tratamento a ser dado às uniões entre pessoas do mesmo sexo, que convivem de modo durável, sendo essa convivência pública, contínua e com o objetivo de constituir família, deve ser o mesmo que é atribuído em nosso ordenamento às uniões estáveis, resta concluir que é possível reconhecer, em tese, a essas pessoas, o direito de adotar em conjunto (...).

É, portanto, hora de abandonar de vez os preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Como assinala Rolim (...):

“Temos, no Brasil, cerca de 200 mil crianças institucionalizadas em abrigos e orfanatos. A esmagadora maioria delas permanecerá nesses espaços de mortificação e desamor até completarem 18 anos, porque estão fora da faixa de adoção provável. Tudo o que essas crianças esperam e sonham é o direito de terem uma família no interior das quais sejam amadas e respeitadas. Graças ao preconceito e a tudo aquilo que ele oferece de violência e intolerância, entretanto, essas crianças não poderão, em regra, ser adotadas por casais homossexuais. Alguém poderia me dizer por quê? Será possível que a estupidez histórica construída escrupulosamente por séculos de moral lusitana seja forte o suficiente para dizer: - “Sim, é preferível que essas crianças não tenham qualquer família a serem adotadas por casais homossexuais”? Ora, tenham a santa paciência. O que todas as crianças precisam é cuidado, carinho e amor. Aquelas que foram abandonadas, foram espancadas, negligenciadas e/ou abusadas sexualmente por suas famílias biológicas. Por óbvio, aqueles que as maltrataram por surras e suplícios que ultrapassam a imaginação dos torturadores; que as deixaram sem terem o que comer ou o que beber, amarradas tantas vezes ao pé da cama; que as obrigaram a manter relações sexuais ou atos libidinosos, eram heterossexuais, não é mesmo? Dois neurônios seriam, então, suficientes para concluir que a orientação sexual dos pais não informa nada de relevante quando o assunto é cuidado e amor para com as crianças. Poderíamos acrescentar que aquela circunstância também não agrega nada de relevante, inclusive quanto à futura orientação sexual das próprias crianças, mas isso já seria outro tema. Por hora, me parece o bastante apontar para o preconceito vigente contra as adoções por casais homossexuais com base numa pergunta: - que valor moral é esse que se faz cúmplice do abandono e do sofrimento de milhares de crianças?”

Postas as premissas, passo ao exame do caso, a fim de verificar se estão aqui concretamente atendidos os interesses dos adotandos. E também sob esse aspecto, a resposta é favorável à apelada.

Como ressalta o relatório de avaliação, de fls. 13/17: Li., de 39 anos, e L. de 31 anos, convivem desde 1998. Em abril de 2003 L. teve a adoção de P.H. deferida e, em fevereiro de 2004, foi deferida a adoção de J.V.. Na época, Li. participou da decisão e de todo o processo de adoção, auxiliando nos cuidados e manutenção das crianças. Elas relatam que procuram ser discretas quanto ao seu relacionamento afetivo, na presença das crianças. Participam igualmente nos cuidados e educação dos meninos, porém é Li. que se envolve mais no deslocamento deles, quando depende de carro, pois é ela quem dirige. Li. diz que é mais metódica e rígida do que L. e observou-se que é mais atenta na imposição de limites. Segundo a Sra. Iara, mãe de Li., a família aceita e apóia Li. na sua orientação sexual: “ela é uma filha que nunca deu problemas para a família, acho que as crianças tiveram sorte, pois têm atenção, carinho e tudo o que necessitam. Li. os trata como filhos” (SIU). Coloca que Li. e L. se relacionam bem. Observou-se fotos dos meninos e de Li. na casa dos pais dela. Eles costumam visitá-la aos finais de semana, quando almoçam todos juntos e convivem mais com as crianças, e com L.. Com a família de L. a convivência é mais freqüente, pois a mãe de L. auxilia no cuidado a J.V. Com relação às crianças: os meninos chamam Li. e L. de mãe. P.H. está com 2 anos e 6 meses, freqüenta a escolinha particular Modelando Sonhos, à tarde. A professora dele, L. B. F., informou que o menino apresenta comportamento normal para a sua faixa etária, se relaciona bem e adaptou-se rapidamente. Li. e L. estão como responsáveis na escola e participam juntas nos eventos na escolinha, sendo bem aceitas pelos demais pais de alunos. Observou-se que P.H. é uma criança com aparência saudável, alegre e ativo. J.V. faz tratamento constante para bronquite e, apesar dos problemas de saúde iniciais, apresenta aparência saudável e desenvolvimento normal para a sua faixa etária. Durante a tarde, ele fica sob os cuidados da mãe de L. enquanto L. e Li. trabalham. A Sra. N. coloca que, os meninos são muito afetivos com as mães e vice-versa. L. coloca que até agora, não sentiu nenhuma discriminação aos filhos, e que P.H. costuma ser convidado para ir brincar na casa de coleguinhas da escolinha. São convidados para festas de aniversário de filhas de colegas de trabalho e amigos.Situação atual: Li coloca que sempre pensou em adotar, o que se acentuou com a convivência com L. e as crianças, pois se preocupa com o futuro dos meninos, já que L. é autônoma e possui problema de saúde. E ela já pensou em uma situação mais estável, trabalha com vínculo empregatício como professora da URCAMP, possuindo convênios de saúde e vantagens para o acesso dos meninos ao ensino básico e superior. Coloca: “a minha preocupação não é criar polêmica, mas resguardálos para o futuro” (SIU). Li. relata que, quando não está trabalhando, se dedica ao cuidado das crianças. Refere-se à personalidade de cada um, demonstrando os vínculos e convivência intensa que possui com os meninos. Diz que costuma limitar a vida social às condições de saúde das crianças, principalmente J.V. (...)

De acordo com o exposto acima, s.m.j., parece que Li. tem exercido a parentalidade adequadamente. Com relação às vantagens da adoção para estas crianças, especificamente, conhecendo-se a família de origem, pode-se afirmar que, quanto aos efeitos sociais e jurídicos, são inegáveis; quanto aos efeitos subjetivos, é prematuro dizer, porém existem fortes vínculos afetivos que indicam bom prognóstico. (grifo nosso) Por fim, de louvar a solução encontrada pelo em. magistrado Marcos Danúbio Edon Franco, ao determinar na sentença que no assento de nascimento das crianças conste que são filhas de L.R.M. e Li.M.B.G., sem declinar a condição de pai ou mãe. Ante o exposto, por qualquer ângulo que se visualize a controvérsia, outra conclusão não é possível obter a não ser aquela a que também chegou a r. sentença, que, por isso, merece ser confirmada (...)”.

[Fernando Nazaré é Assessor Jurídico do CFP.]

Referência:
Adoção: um direito de todos e todas. Conselho Federal de Psicologia (CFP). -- Brasília, CFP, 2008. 52p.
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Documento disponível em: http://www.pol.org.br

Por Cintia Liana

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